Por Rogério de Campos
Tem o interesse do império norte-americano, tem a destrutiva ganância capitalista, tem o racismo, tem a crueldade pura, mas tem também o fanatismo religioso entre as motivações para o infame crime que vem sendo cometido em Gaza.
Parte dos fundamentalistas judaicos e cristãos babam diante da perspectiva de que o genocídio palestino vá liberar espaço para a reconstrução do Templo de Salomão onde agora está o Domo da Rocha e a Mesquita de Al-Aqsa, dois dos santuários mais importantes do islamismo.
Na visão dos fanáticos, a reconstrução do Templo marcará a realização da profecia e a chegada do Messias esperado pelo judaísmo. Na versão cristã, a profecia tem adendo: o Messias dos judeus será na verdade o Anticristo, então acontecerá uma espécie de crossover apocalíptico das duas mitologias, com o Messias/Anticristo enfrentando Jesus. Israel será devastada, a maior parte de sua população será massacrada e os poucos sobreviventes terão que se converter ao cristianismo. Ou seja, os fanáticos judeus e cristãos se aliam pragmaticamente agora com objetivo de se matarem depois.
A ideia de que a reconstrução do Templo está ligada à vinda do Messias é mais ou menos consensual no judaísmo. Assim como a ideia de que sem Templo não há Apocalipse é mais ou menos consenso no evangelismo cristão. Mas há perspectivas diversas a respeito do assunto mesmo entre os judeus mais religiosos e entre evangélicos. Dentre os últimos, tem os grupos — para os quais quanto pior melhor — que pretendem acelerar o Apocalipse (Silas Malafaia e assembleianos), há os que querem impedir isso — minoria, talvez alguns batistas e adventistas — e há os que tentam não interferir — ficam na arquibancada, torcendo ou apenas assistindo. Já entre os judeus religiosos, há os que defendem deixar a Mesquita e o Domo em paz e reconstruir o Templo em algum outro lugar da vizinhança, outros— talvez maioria — acham que o Messias, à ocasião de seu retorno, é quem deve decidir quando, como e onde o novo Templo deve ser construído. Alas da ortodoxia judaica consideram a própria ideia aceleracionista de forçar a vinda do Messias com a construção do Templo, uma ideia “satânica”. Ainda assim, os aceleracionistas têm bastante força no governo israelense atual. Netanyahu não faz questão de disfarçar o desejo de bombardear os dois santuários.
E não é só no governo israelense: os aceleracionistas também abundam no governo Trump. A principal razão para Mike Huckabee ser o indicado de Trump para o cargo de embaixador em Israel foi certamente suas credenciais de sionista cristão e aceleracionista. “Eu nunca uso o termo Cisjordânia (West Bank)”, disse em dezembro de 2023, “Acho ofensivo. Estamos falando da Judeia e Samaria... Precisamos usar a linguagem bíblica”. E mais: referindo-se aos ataques efetuados pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, Huckabee declarou que “Não estamos lidando com uma questão política, social, econômica ou geográfica. Estamos lidando com uma questão espiritual. Isso é o mal”[1].
O Secretário de Defesa Pete Hegseth, também um sionista cristão, declarou que “não há razão para impedir o milagre da recolocação do templo no Monte do Templo”[2] (aliás, ele foi visto berrando “matem todos os muçulmanos” em um evento para veteranos das Forças Armadas)[3]. O aceleracionismo domina também, cada vez mais, a direção das Big Techs, e Peter Thiel e Elon Musk são alguns de seus pastores. Isso tem muita relação, por exemplo, com obsessão de tantos desses multibilionários com o planeta Marte (hora da propaganda: esse é um dos temas do meu romance Um Santo em Marte).
“Curiosamente, em um momento em que as elites seculares do Vale do Silício estão de repente encontrando Jesus”, dizem Naomi Klein e Astra Taylor no texto “Rise of end times fascism”, publicado mês passado no The Guardian [4], “suas visões têm muito em comum com a interpretação fundamentalista cristã do arrebatamento bíblico, quando os fiéis serão supostamente elevados a uma cidade dourada no céu, enquanto os condenados serão deixados para suportar uma batalha final apocalíptica aqui na Terra”. Klein e Astra chamam tal movimento de “fascismo do fim dos tempos”, porque é um fascismo que pretende acelerar o apocalipse.
Nesse sentido, parece coerente que o Templo que os fanáticos religiosos pretendem reconstruir tenha sido originalmente construído pelo “príncipe dos demônios”, Asmodeus.
No segundo volume de Jerusalém, de Alan Moore, é o próprio demônio quem conta ao menino Mike Warren (personagem que Moore criou baseado em Mike Moore, seu irmão mais novo) como isso aconteceu. É famosa a capacidade imaginativa de Moore, mas, nesse caso, ele segue rigorosamente o que diz o Talmude, o Testamento de Salomão e outros livros e lendas a respeito do episódio.
O Asmodeus (ou Asmodeu, Asmodai, Shamdon, Osmodeus, Shinodai, Hammadai e Samael, o Negro) é um dos demônios mais populares do Ocidente. Seria ele a serpente que serviu o fruto da árvore do conhecimento à Eva. No Livro de Tobias, Asmodeus, apaixonado por Sara, mata todos os seus candidatos a marido. No Malleus Maleficarum (1486), o sinistro manual dos inquisidores, Asmodeus é o demônio da luxúria e do abominável pecado da fornicação (“gosto de pensar que eu era o mais romântico”, comenta o Asmodeus de Jerusalém). Jeanne des Anges, madre-superiora das ursulinas de Loudun, diz que é Asmodeus que a leva à impudência, no famoso caso da possessão das freiras na Loudun do século XVII[5]. Asmodeus é o marido de Lilith e, no Clavícula de Salomão, é o chefe dos “Golab, ou Incendiários, gênios da ira e da sedição”. Mas em outras tradições, é retratado como um personagem prometeico que teria ensinado à humanidade as artes da aritmética, geometria, astronomia e mecânica. É nele que teria sido baseado o gênio da lâmpada das Mil e Uma Noites.
O escritor espanhol Luís Velez de Guevara publicou em 1641 a sátira El Diablo Cojuelo [O Diabo Manco], em que Asmodeus é liberto de uma garrafa por um estudante e em retribuição mostra ao rapaz os segredos e podres da sociedade madrilenha. Inspirado no livro de Guevara, o francês Alain-René Lesage escreveu Le Diable Boiteux (1707), em que descreve Asmodeus como um cavalheiro bonito, educado, elegante, simpático, bem-humorado, que ri da sociedade dos homens e manca por causa de uma certa queda. O livro de Lesage é a inspiração para o nome do jornal humorístico Diabo Coxo, que Angelo Agostini e Luiz Gama criaram em 1864. É no Diabo Coxo que Agostini inicia sua carreira de quadrinista.
Guevara, que tinha ascendência judaica, talvez tenha se inspirado no próprio Talmude, que, com frequência, apresenta Asmodeus como um sujeito até simpático, que tem senso de humor e mesmo certa piedade pelos humanos. Gershom Scholem, em seu clássico Cabala, aponta que a tradição judaica fala de “demônios bons, que são preparados para ajudar e fazer favores aos homens. Isso é particularmente verdadeiro quanto aos demônios comandados por Ashmedai (Asmodeus), que aceitam a Torah e são considerados ‘demônios judeus’. Sua existência é mencionada pelos chassídicos asquenazes e também no Zohar’”. Uma lenda diz, inclusive, que Asmodeus foi morto como mártir em 1096, no massacre de Mainz, quando várias centenas de judeus foram cruelmente assassinados pela primeira Cruzada.
Mas voltemos ao Templo. No Livro dos Reis, explica-se que ele foi construído sem que se ouvisse o barulho dos machados e martelos. O Talmude talvez dê a explicação:
Salomão foi aos rabinos, perguntou como deveria ser construído o templo e eles disseram que ele precisaria de uma pedra especial, o esmeril de Naxos. Como quisesse indicação mais precisa, Salomão perguntou onde poderia encontrar essa pedra. Ao invés de responderem em Naxos, ora!, os rabinos disseram: “Trazei aqui demônios, tanto machos como fêmeas: eles saberão dizer onde se encontra”.
Salomão capturou vários demônios, e eles disseram: “Nós não sabemos onde tem essa pedra, mas talvez Asmodeus, príncipe dos demônios, saiba”. “E onde eu encontro ele?”, perguntou Salomão.
“Ele está numa montanha, onde cavou uma cisterna e a encheu de água. Todo dia ele sobe aos Céus, aprende uma ou duas coisas na escola celestial, desce à terra e aprende uma ou duas coisas na escola terrestre, depois volta à cisterna, bebe um pouco de água e vai dormir”.
Salomão chamou um assistente, Benaia. Deu a ele uma corrente e uma tornozeleira com o inefável Nome de Deus gravado nelas. Deu também fios de lã e odres cheios de vinho. Benaia foi à tal montanha, trocou a água da cisterna de Asmodeus por vinho e foi se esconder atrás de uma árvore. Ao chegar, o demônio notou que era vinho o que havia na cisterna, então se lembrou de dois alertas bíblicos contra o vinho (Provérbios 20:1 e Oséias 4: 11) e decidiu não beber. Mas estava com bastante sede e depois de um tempo lembrou: “‘O vinho alegra o coração do homem, e torna o rosto mais radiante que o azeite!’ Livro dos Salmos 104:15!”. E bebeu até cair de bêbado. Benaia então aproveitou e o acorrentou. No dia seguinte Benaia obrigou Asmodeus a ir como prisioneiro até Salomão.
No caminho, Asmodeus ajudou um cego que havia perdido o caminho e ajudou um bêbado que também havia se perdido. Ao passarem por uma alegre festa de casamento, Asmodeus chorou. Viram um homem pedindo a um sapateiro que lhe fizesse um sapato que durasse sete anos, e Asmodeus começou a rir. Benaia ficou intrigado e perguntou ao demônio a razão de tais comportamentos. “Ajudei o cego porque ouvi a proclamação dos Céus de que ele é um homem muito justo. E ajudei o bêbado porque ouvi a proclamação dos Céus de que ele está condenado, então achei melhor que ele tivesse algum alívio aqui neste mundo, já que no próximo não terá nenhum”.
“Mas porque chorou com a festa de casamento?” perguntou Benaia.
“Porque o noivo irá morrer em trinta dias, e a noiva terá que ficar treze anos a espera que o irmão mais novo dele, que agora é uma criança, cresça para se casar com ela, conforme o costume”.
“E o comprador de sapatos? Por que riu dele?”
“Ele pediu um sapato que durasse sete anos, mas ele mesmo vai morrer em sete dias. De que vai lhe adiantar os sapatos?”
No palácio, Salomão deixou Asmodeus preso por alguns dias antes de chamá-lo. Aliás, segundo uma tradição cabalística, Asmodeus era filho da demônia Agrat com o rei David, ou seja, era meio-irmão de Salomão. Finalmente este o chamou e disse:
“Não te peço nada, exceto uma pequena coisa: a pedra naxiana para construir o Templo”.
Asmodeus, um diabo incapaz de mentir, respondeu: “a pedra não foi dada a mim, mas a Rahab, o Príncipe dos Mares. E este guardou a pedra com a poupa[6], porque ela cumpre seus juramentos”.
Os agentes de Salomão foram ao ninho onde a poupa tinha os filhotes e colocaram sobre ele uma placa de vidro bem transparente. Quando a poupa chegou para alimentar os filhotes, tentou entrar no ninho, mas não conseguiu. Ela então pegou a pedra para cortar o vidro, mas estava tão nervosa, que a deixou cair. Os agentes de Salomão pegaram a pedra e a levaram para o rei. A poupa, desesperada pelos filhos e por não ter cumprido o juramento de proteger a pedra, enforcou-se.
Salomão obrigou que Asmodeus construísse o Templo. Na versão da Alan Moore, a história é um pouco diferente daquela contada no Talmude. Eis as palavras de seu Asmodeus:
“As coisas chegaram a um ponto crítico quando um dos diabos inferiores
passou a atormentar construtores mortais perto de Jerusalém.
Quando as vítimas incomodadas buscaram a proteção do rei Salomão,
ele conseguiu usar a magia para pegar o demônio responsável. Salomão
era um sujeito inteligente, pode acreditar. Esse diabo foi então pressionado
e ameaçado até dar os nomes de todos do grupo, todas as seis
dúzias de nós, de Bael até Andromalius. Eu fui basicamente o único
que tentou resistir de alguma forma, mas no fim foi inútil. Salomão nos
pegou com a boca na botija e colocou todos nós para trabalhar construindo
o templo para ele, em um tipo de esquema de trabalho comunitário.
Mas não deixamos barato. Existem problemas na construção
naquele templo no local onde fica que são de uma escala que as pessoas
não entenderiam nem em três mil anos ou mais.”
Um dia, já na finalização da obra, Salomão foi ao demônio e perguntou: “Em Números 23:22 está escrito: ‘Deus os tirou do Egito; as suas forças majestosas são como as do rinoceronte[7]’. Entendo que alegoricamente, quando se fala em ‘rinocerontes’ refira-se aos demônios. Então, qual a vantagem de você sobre nós?”.
Asmodeus então disse: “Remova essa corrente, me dê seu anel e eu te mostrarei minha vantagem”. Salomão, cuja fama de sábio talvez seja um pouco exagerada, imediatamente fez o que demônio pediu. Asmodeus então lhe deu um chute que o jogou a 400 milhas persas (mais de 1600 quilômetros) de distância, para uma terra estranha onde Salomão virou um mendigo. Dizia a todos que havia sido rei de Israel, mas ninguém lhe dava atenção. Asmodeus tomou a forma de Salomão e passou a reinar no lugar dele.
Moore segue mais o Testamento de Salomão que a versão talmúdica. Conto aqui a versão do Talmude do final da história:
Depois de um tempo, os rabinos passaram a estranhar o comportamento do suposto rei. O aumento gigantesco e repentino de seu apetite sexual, por exemplo. Eles descobriram o verdadeiro Salomão na terra distante e o trouxeram de volta, com os amuletos devidos. Quando Asmodeus viu Salomão entrando no palácio, fugiu voando.
Mesmo assim, Salomão viveu o resto de seus dias tremendo de terror ao pensar na possibilidade de Asmodeus voltar. Passou a estar sempre cercado de sessenta guerreiros, dos mais valentes e experientes de Israel. Todos eles estavam sempre com a espada em punho, com medo da noite.
Rogério de Campos é autor de livros como Um Santo em Marte, O Segredo da Sedução do Inocente e Revanchismo. E é também autor de uma elogiada tradução do texto integral de Genesis, para a HQ de Robert Crumb.
[1] https://forward.com/opinion/675457/mike-huckabee-christian-zionism-israel-evangelical/
[2] Monte do Templo é como judeus e cristãos se referem à colina onde estão localizados a Mesquita e o Domo. O lugar também é chamado de Esplanada das Mesquitas.
[3] https://www.newarab.com/news/us-defence-sec-pete-hegseth-reveals-controversial-kafir-tattoo
[4] https://www.theguardian.com/us-news/ng-interactive/2025/apr/13/end-times-fascism-far-right-trump-musk
[5] Mais a respeito nos clássicos História da Filosofia Oculta, de Sarane Alexandrian, e no Os Demônios de Loudun, de Aldous Huxley.
[6] Pássaro europeu.
[7] É tradicional nas diversas traduções da Bíblia que o animal aqui seja um “boi selvagem”, mas na edição do Talmude que consulto está rinoceronte.